Jacqueline Débora Costa afirma ter sido levada a uma sala e recebido pauladas, xingamentos e puxões de cabelo, depois dispensada sob ameaças de morte se denunciasse; rede de supermercados é propriedade de Ilson Mateus, o 9º homem mais rico do Brasil.
Supermercado Mix em São Luís do Maranhão | Foto: Giovana Kury / Ponte Jornalismo
Ao sentar na cadeira do escritório de advocacia, Jacqueline Débora Costa, de 42 anos, chora. Na última terça-feira (20), ao sair de um dos supermercados Mix Mateus, do bairro Araçagy, em São Luís do Maranhão, a mulher conta que, após ser acusada de furto, foi levada por um vigilante e uma funcionária para uma sala do estabelecimento, onde teria sido espancada com uma ripa de madeira e xingada por cerca de uma hora. As lágrimas são de humilhação e medo – depois de tudo, ela afirma que foi ameaçada caso denunciasse; o que, corajosamente, fez mesmo assim.
“Eu cheguei lá para comprar uma carne e, ao efetuar a compra, percebi que meu cartão não estava. Voltei ao local, coloquei a carne no congelador e saí. Liguei para alguém trazer o cartão. Na saída, fui abordada de forma agressiva pelo vigilante. Ele disse: ‘por favor, me acompanhe, senhora’. Respondi: ‘para onde que eu vou?’ e ele: ‘a senhora é uma ladra, vagabunda, desgraçada, me acompanhe agora’. Eu dizia que eu não tinha nada a esconder, não tinha nada na minha bolsa. Em seguida, veio uma funcionária do Mateus e me xingou muito mais”, contou Jacqueline.
Sala reservada
Após as acusações, a vítima conta que foi levada a uma sala identificada como “sala de prevenção de perdas”. Chegando lá, a funcionária desligou a câmera de segurança. Assim, começou a tortura, que teria durado mais de uma hora. “Abriram minha bolsa, viram que eu não tinha nada. Ela [a funcionária] pegou uma ripa, pediu que eu abrisse minha mão, disse que eu ia apanhar. Eu não abri, então ela me deu uma ripada no braço”, conta a mulher, enquanto mostra o grande roxo em seu braço que persiste há três dias.
Jacqueline Débora Costa, torturada no mercado Mix em São Luís | Foto: Giovana Kury / Ponte Jornalismo
“Eu me levantei para me defender. Ele [o vigilante] tomou a ripa e me bateu duas vezes na perna”, mostra, novamente, as marcas da agressão. “Chegou um terceiro funcionário, começou a me agredir, puxou meu cabelo, me xingou. Ficavam mandado eu destravar e atender o celular, eu não sei te explicar o motivo”, disse a vítima. No Boletim de Ocorrência registrado logo após fato, ainda consta que um dos funcionários disse tê-la identificado como parte de uma gangue e ameaçou dar um tiro em sua mão.
Hematoma nas pernas de Jacqueline | Foto: Giovana Kury / Ponte Jornalismo
Segundo Jacqueline, todos estavam sem identificação, e a tortura física e psicológica continuou até chegar um homem que dizia ser policial – mesmo sem estar com o uniforme –, e pedir para falar, a sós, com um daqueles funcionários. “Eu pedia socorro, para me entregarem para a polícia, pois, se eu tivesse roubado, iria ser encaminhada para lá”. A mulher contou que algum deles disse que ia chamar a polícia, mas nunca que ela chegou.
Hematoma no braço | Foto: Giovana Kury / Ponte Jornalismo
Ainda lá dentro, depois de o policial ter conversado a sós com um dos funcionários, eles mudaram de abordagem: “conversaram comigo como se nada tivesse acontecido. Me convencer a ir embora. Me entregaram meus pertences, tentaram me convencer a não denunciar. Disseram que eu estava mexendo com gente grande e, se eu denunciasse, poderia aparecer morta”, disse, preocupada. Ao sair, um dos funcionários a acompanhou até a parada de ônibus. No caminho, tentava convencê-la a não prosseguir com a denúncia e, agora de forma complacente, se ofereceu até a comprar-lhe medicamentos, caso precisasse.
Chegando em casa e deparando-se com os dois filhos – uma menina de 7 e um rapaz de 20 anos –, ficou envergonhada. “Passei um constrangimento muito grande. Cheguei toda roxa, falei que eu caí. Estou com vergonha até de sair na rua. Fico até emocionada”, desabafou Jacqueline.
Investigação
“Ainda que tivesse furtado, não seria uma atitude correta”, diz o advogado, Marthan Rodrigues, que foi acionado pela mulher logo após o ocorrido. “Ela foi vítima das agressões, ficou com eles em uma sala, e depois agiram como se nada tivesse acontecido. Talvez seja uma prática comum, de uma pessoa tão poderosa, de usar esses artifícios. Tem aquele sentimento de fazer justiça com as nossas próprias mãos, que é vedado pela nossa Constituição. Nada justifica essa atitude”, afirmou.
Logo depois do acontecido, Jacqueline entrou em contato com seu advogado e foi à Casa da Mulher, onde um inquérito foi aberto para investigar o caso. Segundo a delegada Karla Daniele, da Delegacia Especial da Mulher de São Luís, a Polícia Civil tomou todas as providências necessárias desde que a vítima fez o Boletim de Ocorrência. “A vítima foi encaminhada para a realização do exame de corpo delito e também solicitamos as imagens do estabelecimento a fim de identificar os autores, para que eles sejam responsabilizados criminalmente pelos atos”, contou. Até a publicação desta matéria, na sexta-feira (23), o Grupo Mateus não havia disponibilizado as filmagens. A delegacia teve que solicitá-las outra vez e está no aguardo.
“Quantos casos como esses não ficaram sem o conhecimento das autoridades, sem tomar as providências cabíveis? Ou aquelas pessoas que tentam, mas não conseguiram porque não têm acesso à justiça?”, questionou o advogado, em conversa com a reportagem. “É desrespeito muito grande com a pessoa humana e com o gênero feminino. É reprovável em várias vertentes”, pontuou o advogado. “Se aproxima muito ao crime de tortura, que é hediondo e inafiançável. Mas essa tipificação fica a cargo da Polícia Judiciária”. À reportagem, a delegada Karla disse que a tortura é, de fato, uma das linhas de investigação, mas que ainda é cedo para afirmar.
O Mix Mateus faz parte da rede de supermercados do Grupo Mateus, cujo dono, Ilson Mateus, apareceu na lista da Forbes de 2020 como o 9º mais rico do país. Bilionário, teve a fortuna avaliada em R$ 20 bilhões, à frente inclusive de Luciano Hang, dono da Havan. Os supermercados do grupo dominam o estado do Maranhão.
Em nota, a Polícia Civil do Maranhão reafirmou que “o caso já está sendo investigado pela Delegacia Especial da Mulher de São Luís, onde a vítima registrou a denúncia. As providências preliminares já foram tomadas, entre elas, a solicitação de imagens do circuito interno do supermercado e o exame de corpo de delito. A Polícia Civil ressalta que testemunhas serão ouvidas no decorrer das investigações”. A reportagem questionou se instituição tinha conhecimento de casos similares envolvendo agressões em supermercados, mas não foi respondida.
Outro lado
Procurado pela reportagem e questionado se os funcionários já teriam sido identificados e afastados, o Grupo Mateus não respondeu e somente reenviou a nota previamente divulgada. Na íntegra: “Informamos que foi montada uma sindicância para apurar o caso e reforçamos, de antemão, que a conduta relatada não condiz com os nossos procedimentos e valores. Nos colocamos inteiramente à disposição das autoridades para esclarecimentos”.
ERRATA: O título inicial dizia que Jacqueline havia voltado ao mercado para pegar o cartão; na verdade, ela esqueceu o cartão e estava esperando quando foi presa pela equipe. O título foi corrigido às 15h15 de 25/07/2021.
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